Guia de Possibilidades Pedagógicas do Deixa que eu Conto¹

O Deixa que eu Conto é uma iniciativa do UNICEF no Brasil que tem como objetivo levar, para cada menino e cada menina, histórias, brincadeiras e curiosidades através de programas em áudio de, em média, 30 minutos, com uma curadoria cuidadosa e repleta de respeito pelas infâncias brasileiras.

A iniciativa nasce em resposta à pandemia do Covid-19, em um momento em que precisamos nos reinventar para chegar às casas, em especial, das crianças. Pensando nisso, o UNICEF no Brasil lançou a iniciativa Deixa que eu Conto, com histórias e experiências educacionais em áudio convocando as crianças à co-criação e à imaginação, e como protagonistas do seu desenvolvimento e aprendizagens. Elas não substituem as experiências coletivas vivenciadas no contexto das instituições de Educação Infantil, mas garantem a aproximação com as famílias, essencial neste momento adverso. Além disso, a iniciativa se alinha e fortalece as orientações da Sociedade Brasileira de Pediatria, em especial no que se refere ao ‘’tempo de tela’’2 e à distração passiva que os equipamentos eletrônicos promovem em um momento em que é importantíssimo proporcionar as brincadeiras ativas e as interações com o mundo.

Sabemos da importância da Educação Infantil como garantia do direito à educação para as crianças de 0 a 5 anos e 11 meses no Brasil e das especificidades pedagógicas diante dessa faixa etária, necessitando, portanto, de um olhar atento e específico por parte de todos na primeira etapa da educação básica. Diante disso, a iniciativa Deixa que eu Conto, nesta publicação, é organizada em forma de um Guia de Possibilidades Pedagógicas, pois acreditamos que as professoras e os professores da Educação Infantil podem se inspirar e contribuir de maneira ativa e criativa para a utilização dos podcasts em suas práticas e em seus planejamentos do cotidiano com as crianças.

Florence Bauer

Representante do UNICEF no Brasil

 

O que você vai encontrar neste guia³

A arte de viver é a tarefa mais difícil que as crianças têm de aprender e aprenderão melhor se seus pais ou educadores tiverem uma maneira de enxergar a vida como um todo. (...) A infância é um período importante na vida, ao qual as crianças têm direito. Ter uma infância é o direito humano mais fundamental das crianças.’’
(David Elkind)

 

Dividimos os podcasts do Deixa que eu Conto em três grandes conteúdos, como detalhado a seguir.

  • Conteúdos - Deixa que eu Conto: 96 programas realizados pelas contadoras Carol Levy e Kiara Terra, que trazem histórias da cultura popular e histórias mundialmente conhecidas.

  • Conteúdos - Deixa que eu conto Amazônia: 48 programas realizados pelos contadores Leandro Medina e Andrea Soares, que trazem histórias da cultura popular e tradicional dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos.

  • Conteúdos - Deixa que eu conto Afro-brasileiros: 42 programas realizados pelas contadoras Vovó Cici de Oxalá, Kemla Baptista, Mafuane Oliveira, Samara Rosa e Suane Brazão e pelo contador Ivamar dos Santos, que trazem histórias de resgate e empoderamento identitário do povo preto.

  • Conteúdos - Deixa que eu Conto Para Cada CriançaO Deixa que eu Conto para cada Criança apresenta 20 podcasts (conteúdos em áudio) que discutem e possibilitam a reflexão sobre a inclusão, em especial, das crianças com deficiência. As vozes, as histórias e as atividades aqui propostas levam em consideração a diversidade e as possibilidades de uma cidade e de uma escola mais inclusiva, que não deixa ninguém para trás, e nem de fora! Pensando em cada vez mais ampliar a acessibilidade, além do áudio você pode acessar o conteúdo com tradução em libras e descrição pelo canal do Youtube do UNICEF. Temos histórias, entrevistas, curiosidades, músicas e brincadeiras. Aproveite!

Os programas têm uma estrutura criada por cada contador, que pode se modificar, mas que consolidamos nos tópicos abaixo, descritos e indexados aos Direitos de aprendizagem e aos Campos de Experiência da BNCC da Educação Infantil:

  • Histórias

  • Música/Dança

  • Brincadeiras

  • Trava-Línguas

  • Entrevistas

  • Personagens (Euzébio e Aurora/Arapapá)

  • Ampliando o Vocabulário (Pretoguês/Palavras Tupi)

  • Como é a sua avó?

  • Cartas pra Sonhar

  • Xô, Coronavírus

  • Floresta Viva

  • Silêncio

  • Pé de Palavra

  • Meu corpo minha casa

  • Cidade dos meus amores

  • Guia da Natureza

Em cada página do Guia você encontrará uma série de questões e ações que podem ser feitas com as crianças. Além disso, escolhemos uma parte do programa de cada podcast para propor atividades, relacionando-as com a faixas etárias, 0 a 3 anos, 4 e 5 anos e 6 a 8 anos.

 

 

Guia de Possibilidades Pedagógicas: iniciando a conversa

“Quem somos nós, senão uma combinação de experiências, informações, de leitura, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis.’’  
(Ítalo Calvino) 

 

  • Em um momento como o da pandemia que vivenciamos em 2020, com a Covid-19 e a necessidade do isolamento social, o rádio e as plataformas digitais de áudio nos fazem chegar aos mais diferentes municípios e localidades em todo o país. Contribuem também para uma experiência não visual das telas, centrada na audição, convocando as crianças à cocriação e ao imaginar e trazendo a possibilidade do protagonismo, contribuindo para garantir seu desenvolvimento e aprendizagem. Isso não substitui as experiências coletivas vivenciadas no contexto das instituições de Educação Infantil, mas garante uma assistência educacional nesse momento adverso. Foi a partir dessa concepção que o UNICEF no Brasil desenvolveu a iniciativa Deixa que eu Conto, com foco nas crianças de 0 a 8 anos de idade. 

  • A Base Nacional Comum Curricular - BNCC é, sem dúvida, um documento que orienta para   uma melhor qualidade nas ações pedagógicas. No caso da etapa da Educação Infantil, ela resgata e aprimora o que já vínhamos construindo no país, no que se refere às orientações curriculares e aos princípios pedagógicos, estruturados nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009), que subverte a concepção de conteúdos e organiza os currículos em seis Direitos de Aprendizagem e cinco Campos de Experiências. 

  • De acordo com a BNCC, os eixos estruturantes das práticas pedagógicas são as interações e brincadeiras, as competências gerais da Educação Básica descritas na Base, e os seis Direitos de Aprendizagem e desenvolvimento.  Elas asseguram, na Educação Infantil, as condições para que as crianças aprendam desempenhando papel ativo em ambientes que as convidem a vivenciar desafios e a sentirem-se provocadas a resolvê-los, nos quais possam construir significados sobre si, os outros e o mundo social e natural. Isso tudo se organiza na prática, no que denominamos Campos de Experiências, em que as professoras e os professores desenvolvem uma pedagogia com um caráter prático-reflexivo. Esses Campos de Experiências já estão descritos desde 2009 como forma de organizar o currículo da Educação Infantil⁴.  

  •   As experiências (corporais, sensoriais, afetivas e cognitivas) das crianças no cotidiano/rotina da Educação Infantil devem acontecer em contextos que viabilizam e ressignificam conhecimentos de diferentes naturezas. Esses, muitas vezes, ficam implícitos para as crianças, embora devam ser conscientes para o(a) professor(a) e sedimentados nas propostas de mediação pedagógica. 

 

Os Direitos de Aprendizagem estão descritos na Base Nacional Comum Curricular:  

  • Brincar – toda criança tem direito ao brincar. A brincadeira é vital para que elas aprendam, sendo organizadora da subjetividade humana e importante para que essas crianças acessem toda a produção cultural desenvolvida.   

  • Expressar – toda criança pode se expressar. Há muitas formas de expressão e as crianças têm o direito de aprender que podem, quando podem e como podem se expressar. 

  • Conhecer-se - toda criança tem o direito de se conhecer, e esse direito de aprendizagem ajuda na construção da própria identidade, apoiando-as a se identificarem, a conhecerem seus gostos, suas preferências, seu corpo.  

  • Conviver – toda criança tem o direito de conviver. É necessária a convivência entre crianças da mesma idade e de diferentes faixas etárias e entre crianças, adolescentes e adultos. Conviver com o bairro, com a cidade, com o mundo. A convivência oportuniza a aprendizagem de que temos os mesmos direitos, mas que podemos ser diferentes, com culturas diferentes. Aprender a conviver constrói uma humanidade mais pacífica e que respeita, identifica as diferenças como uma oportunidade de aprendizagem. 

  • Explorar – toda criança tem o direito de explorar, e esse direito de aprendizagem se relaciona a explorações internas, de ordem psicológica, e externas, na exploração do mundo, dos materiais, da natureza, da alimentação, dos espaços, dos tempos. 

  • Participar - toda criança tem o direito de participar, desde em escolhas cotidianas que geram memórias afetivas, como em escolhas que as constroem e oportunizam a consciência cidadã. Aprender a participar é aprender a fazer escolhas, é aprender a respeitar a escolha do outro.  

 

Os Campos de Experiência⁴ são a forma como na Educação Infantil organizamos o currículo, ou seja, é para onde precisamos olhar para organizar as rotinas e os cotidianos de maneira intencional para as crianças: 

  • O eu, o outro e o nós - “É na interação com os pares e com os adultos que as crianças vão constituindo um modo próprio de agir, sentir e pensar e vão descobrindo que existem outros modos de vida, pessoas diferentes, com outros pontos de vista. Conforme vivem suas primeiras experiências sociais (na família, na instituição escolar, na coletividade), constroem percepções e questionamentos sobre si e sobre os outros, diferenciando-se e, simultaneamente, identificando-se como seres individuais e sociais. Nesse campo, ao mesmo tempo em que participam de relações sociais e de cuidados pessoais, as crianças constroem sua autonomia e senso de autocuidado, de reciprocidade e de interdependência com o meio.”  

É nesse campo que as crianças estarão em contato com outras culturas e com a diversidade, aprendendo a respeitá-la e a valorizá-la. 

  • Escuta, Fala, Pensamento e Imaginação – “As experiências com a literatura infantil, propostas pelo educador, mediador entre os textos e as crianças, contribuem para o desenvolvimento do gosto pela leitura, do estímulo à imaginação e da ampliação do conhecimento de mundo. (…) o contato com histórias, contos, fábulas, poemas, cordéis etc. propicia a familiaridade com livros, com diferentes gêneros literários, a diferenciação entre ilustrações e escrita, a aprendizagem da direção da escrita e as formas corretas de manipulação de livros. Nesse convívio com textos escritos, as crianças vão construindo hipóteses sobre a escrita que se revelam, inicialmente, em rabiscos e garatujas e, à medida que vão conhecendo letras, em escritas espontâneas, não convencionais, mas já indicativas da compreensão da escrita como sistema de representação da língua.” 

Nesse campo devem-se promover experiências de fala e escuta, como a contagem de histórias, brincadeiras de faz de conta, o estímulo do diálogo entre os colegas, o incentivo na descrição oral de determinadas atividades e em narrativas individuais e em grupo.  

  • Traços, Sons, Cores e Formas - “Essas experiências contribuem para que, desde muito pequenas, as crianças desenvolvam senso estético e crítico, o conhecimento de si mesmas, dos outros e da realidade que as cerca. Portanto, a Educação Infantil precisa promover a participação das crianças em tempos e espaços para a produção, a manifestação e a apreciação artística, de modo a favorecer o desenvolvimento da sensibilidade, da criatividade e da expressão pessoal das crianças, permitindo que se apropriem e reconfigurem, permanentemente, a cultura, e potencializem suas singularidades, ao ampliar repertórios e interpretar suas experiências e vivências artísticas.”  As experiências possíveis nesse campo dialogam com as expressões culturais da música, do teatro, da dança, dos filmes, das fotografias, das pinturas etc. e contribuem para que as crianças desenvolvam essas vertentes artísticas. 

  • Espaço, Tempos, Quantidades, Relações e Transformações - “(…) a Educação Infantil precisa promover experiências nas quais as crianças possam fazer observações, manipular objetos, investigar e explorar seu entorno, levantar hipóteses e consultar fontes de informação para buscar respostas às suas curiosidades e indagações. Assim, a instituição escolar está criando oportunidades para que as crianças ampliem seus conhecimentos do mundo físico e sociocultural e possam utilizá-los em seu cotidiano.” A curiosidade pelo mundo físico, por diferentes formatos dos objetos e pelos fenômenos naturais é desenvolvida pelas crianças desde muito cedo. 

  • Corpos, Gestos e Movimentos - “Por meio das diferentes linguagens, como a música, a dança, o teatro, as brincadeiras de faz de conta, elas se comunicam e se expressam no entrelaçamento entre corpo, emoção e linguagem. As crianças conhecem e reconhecem as sensações e funções de seu corpo e, com seus gestos e movimentos, identificam suas potencialidades e seus limites, desenvolvendo, ao mesmo tempo, a consciência sobre o que é seguro e o que pode ser um risco à sua integridade física. O corpo das crianças ganha centralidade, pois ele é o partícipe privilegiado das práticas pedagógicas de cuidado físico, orientadas para a emancipação e a liberdade, e não para a submissão. Assim, a instituição escolar precisa promover oportunidades ricas para que as crianças possam, sempre animadas pelo espírito lúdico e na interação com seus pares, explorar e vivenciar um amplo repertório de movimentos, gestos, olhares, sons e mímicas com o corpo, para descobrir variados modos de ocupação e uso do espaço com o corpo (tais como sentar com apoio, rastejar, engatinhar, escorregar, caminhar apoiando-se em berços, mesas e cordas, saltar, escalar, equilibrar-se, correr, dar cambalhotas, alongar-se etc.).” Aqui, o corpo ganha centralidade e professoras e professores têm a possibilidade de mostrar à criança que o seu corpo deve ser cuidado com carinho e atenção e que existem ensinamentos sobre o respeito e o limite que ela pode impor. 

 

A iniciativa Deixa que eu Conto foi desenvolvida com o intuito de apoiar aprendizagens significativas que possam auxiliar na consolidação da alfabetização das crianças de 6 a 8 anos, sem abandonar a forma lúdica, criativa e conectada à imaginação dessa faixa etária. Segundo Vigotski (1991), quando há mediação de professores, famílias e outras crianças a brincadeira e o faz de conta desenvolvem as potencialidades infantis.⁵

Considerando isso, o Guia de Possibilidades Pedagógicas do Deixa que eu Conto busca organizar, indexar e propor possíveis ações pedagógicas que podem ser organizadas e inseridas nos planejamentos dos professores, transformando-as em experiências significativas com as crianças. Portanto, é importante evidenciar que a intenção com este Guia é que cada professor, a partir dos podcasts e das sugestões disponibilizadas, possa se inspirar e, de forma autoral, organizar tempos, espaços e materiais que o auxilie a garantir direitos de aprendizagem e desenvolvimento no trabalho cotidiano com as crianças.    

Para que as aprendizagens aconteçam, é fundamental que professores e pais/responsáveis tenham asseguradas algumas concepções, por vezes complexas, mas que precisam estar na base das ações dos adultos para que possamos garantir aprendizagens significativas para todas as crianças:  

  1. Toda criança aprende! 

  1. É importante ter uma escuta ativa, atenta e afetiva!  

  1. Boas perguntas favorecem boas experiências e investigações! 

  1. As histórias, ouvidas, faladas ou lidas geram aprendizagens e estimulam a curiosidade ao conhecimento! 

  1. A brincadeira e a imaginação são centrais em qualquer ação pedagógica com crianças da Educação Infantil! 

 

De acordo com Paulo Freire⁶,  “um processo de refazer o mundo, de dizer o mundo, de conhecer, de ensinar o aprendido e de aprender o ensinado, refazendo o aprendido, melhorando o ensinar. Foi exatamente porque nos tornamos capazes de dizer o mundo na medida em que o transformávamos, em que o reinventávamos, que terminamos por nos tornar ensinantes e aprendizes’’. 

 A imaginação e a criatividade convocam o novo, o diferente. Problematizar o conhecimento, inquietar e questionar são ações que fazem com que a prática educativa possa se tornar um “quintal imaginário’’, mobilizando novos pensamentos e gerando conhecimento.  

Acreditamos que a partir da escuta dos programas, professoras e professores podem aproximar os conhecimentos das crianças aos conhecimentos da humanidade. Sendo possível organizar em seus planejamentos e cotidianos aprendizagens que podem ser vividas por todos nos espaços educativos.  

 

1.https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/A_CRIANCA_DE_0_A_3_ANOS_E_O_MUN-DO_DIGITAL.pdf

2.https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/21511d-MO_-_UsoSaudavel_TelasTecnolMi-dias_na_SaudeEscolar.pdf

3.http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=9769-diretri-zescurriculares-2012&category_slug=janeiro-2012-pdf&Itemid=30192

4.BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018

5.VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991

6.FREIRE, P. Política e educação: ensaios. São Paulo: Cortez, p.19, 1993.